A taxa de cesarianas em Portugal é das mais elevadas da União Europeia. Atinge já os 32% no SNS e mais do dobro nos hospitais privados. Há até privados que nem sequer fazem partos normais. A Grande Reportagem foi tentar perceber porque motivo há cada vez mais cesarianas sem indicação clínica, apesar de ser um procedimento com mais riscos para a mulher e para o bebé.
A taxa de cesarianas em Portugal é a 7.ª mais elevada da União Europeia. Nos hospitais públicos é já superior a 30% e mais do dobro (66%) nos privados. Em alguns privados é taxa é de 100% porque nem sequer fazem partos vaginais.
Há várias razões que podem explicar estes números, que muitos especialistas consideram elevados e que têm vindo a crescer nos últimos anos, mesmo com os riscos associados ao parto cirúrgico.
Riscos da cesariana
"Como cirurgia que é, vai nos pôr em contato com órgãos que, em princípio, não seriam chamados ao caso se tivéssemos um parto por via vaginal, nomeadamente os órgãos vizinhos do útero”, explica a obstetra Marcela Forjaz.
Na cesariana, o risco de infeção e de hemorragia é 11 vezes superior, há quatro vezes mais probabilidade da mulher vir a precisar de uma transfusão sanguínea e o risco de morte da mãe é cinco vezes maior do que no parto vaginal.
Também há diferenças para o bebé, que num parto normal, “ao passar pelo canal de parto, é obrigatoriamente é esfregado no fluido vaginal, que está colonizado com inúmeras bactérias. Bactérias amigas, que em elevado número têm efeitos protetores contra a infeção, contra a alergia”, refere Luís Pereira da Silva.
O neonatologia do Hospital Dona Estefânia diz que quando o bebé nasce por cesariana "há um hiato de mais ou menos 10 dias até ter a flora intestinal estabelecida, enquanto no parto vaginal isso acontece 3 dias depois. Esse período em que fica privado dessa vantagem, muda completamente a regulação imunitária, predispõe a asma".
Cesariana com opção
"Antes de estar grávida, eu já queria uma cesariana. Um dia que eu escolhesse, para que a chegada da nossa filha fosse programada", conta Jéssica Duarte.
Grávida pela primeira vez, diz estar consciente dos riscos mas mesmo assim prefere a cesariana ao parto vaginal. "Eu compreendo perfeitamente que é mais cómodo, pelo menos para as pessoas que gostam de ter a sua vida programada. O problema é que as desvantagens são de tal forma importantes que ultrapassam todas essas potenciais vantagens", defende o obstetra e presidente da Sociedade Europeia de Medicina Perinatal, Diogo Ayres de Campos.
Andreia Baleizão teve três filhos, os três de cesariana. O primeiro parto foi cirúrgico por indicação do médico mas a partir daí foi opção de Andreia ter sempre os filhos por cesariana.
“Há esse mito de que quem fez uma cesariana é menos mãe, por não ter passado por todo o processo de um parto normal, vaginal. Não me sinto minimamente mais ou menos, sinto-me igual, ou seja, sinto-me mãe”, confessa a fotógrafa de Oeiras.
A obstetra Marcela Forjaz defende que o parto vaginal deve sempre ser a primeira opção de qualquer mulher, por questões de saúde, mas entende que "em última instância, a mulher é dona do seu corpo, informada dos riscos que uma cesariana possa ter e se, mesmo assim, pretende a cesariana, a vontade dela deve prevalecer".
Mais de metade dos partos no privado são cesarianas
A taxa de cesarianas em Portugal é de 38% mas é sobretudo nos hospitais privados que o número de partos cirúrgicos é mais elevado.
“No lado privado, há realmente um interesse em fazer cesarianas, não só por uma questão de programação da atividade, mas também porque, em termos financeiros, é mais remunerador do que um parto normal”, explica o economista Pedro Pita Barros.
A obstetra Marcela Forjas, que trabalha no público e no privado, garante que os médicos não são pressionados pelas instituições onde trabalham para fazerem mais cesarianas por questões financeiras mas admite que também para os médicos pode ser mais vantajoso o parto cirúrgico, já que não são necessárias tantas horas para acompanhar uma mulher que está em trabalho de parto e porque há muitas seguradoras que continuam a pagar o dobro por uma cesariana, em comparação com parto vaginal.
“Quando me diz que é mais proveitoso para o obstetra, sim, será, mas não é uma diferença assim tão grande e eu acho que há uma ínfima parte dos obstetras que põe esse tipo de interesse à frente”, acredita a obstetra.
Há depois outras causas apontadas pelos especialistas e que ajudam a explicar a elevada taxa de cesarianas em Portugal. O facto das mulheres engravidarem cada vez mais tarde, muitas vezes com a ajuda de tratamentos de infertilidade, e até a obesidade, são questões clínicas que segundo a diretora de obstetrícia do Hospital de São João, no Porto, ajudam a explicar o número cada vez maior de cesarianas.
Mesmo assim, segundo Marina Moucho, nada justifica que haja unidades de saúde com taxas de cesariana de 100%. "Isso é completamente anormal", considera a obstetra.
Três hospitais em Portugal com taxas de 100%
São todos no norte do país e não realizam mais do que 30 partos por ano, mas são todos cesarianas. O Hospital da Boa Nova, em Matosinhos, e o Trofa Saúde Vila Real, os dois do grupo Trofa Saúde, realizaram durante todo o ano de 2022 quatro e três cesarianas, respetivamente. Os dois recusaram responder às perguntas da SIC, apenas o Hospital Particular de Viana do Castelo (HPVC) aceitou dar entrevista.
O diretor do clínico do hospital, que realizou 24 partos cirúrgicos em 2022, diz que só fazer cesarianas é uma opção da instituição.
“Para se poder fazer partos, é preciso prestar cuidados de saúde intraparto, temos que estar licenciados, temos que ter uma licença que é emitida pela Entidade Reguladora da Saúde (ERS). Se não temos licença, não podemos fazer. Portanto, não estamos licenciados para cuidados obstétricos intrapartos”, explica Domingos de Oliveira.
Questionada pela SIC, a ERS garante que a esclarece que "todas as unidades de saúde do setor privado que tenham por objeto a prestação de serviços médicos e de enfermagem de obstetrícia e neonatologia – independentemente do tipo de parto (eutócico, fórceps, ventosa ou cesariana) - deverão dar cumprimento ao disposto nas portarias que fixam os requisitos mínimos relativos à organização e funcionamento, recursos humanos e instalações técnicas definidos para o exercício desta atividade".
Acrescenta ainda que "a obtenção do título – licença de funcionamento – constitui condição de abertura e funcionamento do estabelecimento".
Mas a verdade é que a própria entidade reguladora, anualmente, inclui o HPVC na lista de prestadores de cuidados de saúde que realizam partos. A SIC perguntou à ERS porque motivo publica dados de um hospital que a própria ERS não licenciou mas não obteve resposta.
O governo de António Costa admitiu no início do ano passado encerrar estes hospitais privados com taxas de cesariana de 100%. Mas mais de um ano depois, nada foi feito nem foram criadas as regras, também anunciadas nessa altura, para reduzir o número de partos cirúrgicos em Portugal.
Problemas no SNS criam incerteza
O fecho rotativo das maternidades trouxe vários constrangimentos no ano passado e, mesmo este ano, com encerramentos de algumas maternidades durante o fim de semana, muitas mulheres optam pelo privado por uma questão de previsibilidade.
“Cada vez há mais mulheres a ir para o privado porque o público está de pernas para o ar. Como é que é possível fechar-se uma maternidade como se fosse uma mercearia?”, questiona Sara do Vale, da Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e Parto.
Isso, acredita também o obstetra Diogo Bruno, pode estar a provocar um aumento na taxa de cesarianas em Portugal, isto porque no privado mais facilmente são feitas cesarianas.
"Os hospitais públicos não aceitam tão facilmente um pedido para uma cesariana, ela só é feita quando há mesmo indicação clínica para isso", explica o obstetra do Hospital São Franciso Xavier, em Lisboa, que acrescenta ainda que "do ponto de vista da saúde pública, fazer cesarianas eletivas sem motivo clínico, não é uma boa ideia, porque aumentamos o risco para as pessoas e para a população geral.”
Ficha Técnica
- Jornalista - Sofia Cordeiro Coelho
- Repórter de Imagem - Rogério Esteves
- Editor de Imagem - Rui Berton
- Grafismo - Rolando Arrifana (3D), Rui Aranha
- Produção - Diana Matias
- Colorista - Gonçalo Carvoeiras
- Pós-Produção Áudio - Octaviano Rodrigues
- Coordenação - Miriam Alves
- Direção - Marta Brito Reis, Ricardo Costa